a eternização da memória em blade runner

Há cerca de uma semana ,a Warner Bros. Pictures publicou um novo trailer para a sequência do antológico Blade Runner, entitulado “Blade Runner 2049”. Para se ter uma ideia de como a notícia é relevante, o vídeo – que já está com quase 13 milhões de visualizações – figurou, na semana de seu lançamento, na #37 posição dos vídeos “Em Alta” no YouTube.

I shit you not!

Para quem caiu de paraquedas e ainda não sabe do quê o filme se trata, segue uma breve síntese: o filme é baseado no livro de Philip K. Dick, “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, de 1968 (guardem bem esta data), que conta sua história numa Los Angeles decaída tomada pelas grandes corporações, num ambiente totalmente globalizado, poluído, sofrendo dos efeitos de um modelo econômico inviável do ponto de vista ecológico e adoecido moralmente pelos excessos de consumo. O colapso da civilização humana, inclusive, fica evidente no contraste entre a densa acumulação de estratos urbanos: a população mais pobre fica confinada em espaços públicos claustrofobicamente reduzidos pelo crescimento populacional desenfreado – espaço este que é tomado, por vezes, pelas grandes vitrines e pelos comércios ambulantes -, contrastando com o outro lado do sistema, onde presenciamos os grandes prédios corporativos (que evocam sua imponência através da forma da pirâmide). Ironicamente, os espaços corporativos, apesar de fisicamente maiores, entregam ao expectador uma enorme sensação de vazio – uma vez que servem apenas à exclusiva função de medida autoafirmativa de riqueza e poder dos grandes magnatas, e não necessariamente para servirem ao propósito de serem ocupados.

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Neste mundo inóspito de contrastes claros num mundo absolutamente escuro, a replicação genética foi uma das saídas encontradas pela civilização para conseguir subsistir – partindo desde a replicação de plantas, e chegando até mesmo aos animais… incluindo aqui os seres humanos. A Tyrell Corporation, responsável pela popularização dos replicantes, realiza um serviço de engenharia genética para criar os seres humanos biologicamente replicantes – seres estes que, para todos os efeitos, são como humanos: possuem intelecto desenvolvido, fluídos corporais comuns, além de necessidades fisiológicas normais. Os então chamados replicantes são desenvolvidos e imbuídos de falsas lembranças, para que, ao serem despertos (ou criados, como queiram), acreditem tratarem-se de seres humanos para realizar tarefas de risco em ambientes inóspitos fora da Terra, num regime de penosa submissão. Acontece que, vez ou outra, estes replicantes, ao tomarem ciência de sua condição enquanto andróides, acabam se revoltando e ficando à mercê de figuras sombrias do submundo pós-tecnológico: servem como ladrões, assassinos e, às vezes, até mesmo à indústria pornográfica e da prostituição. Rick Deckard então é apresentado como um blade runner, um “caçador de andróides”, que sempre que a situação foge ao controle com um replicante é chamado para dar cabo da existência do mesmo.

O problema é que Deckard, uma figura melancólica e moralmente arrasada, já está aposentado de seu trabalho como caçador – e é somente a contragosto que é convencido a caçar um perigoso grupo de replicantes que fugiu de uma das colônias, e que teria encontrado refúgio nas ruas de Los Angeles.

E é a partir daí que a trama se desenvolve, focando principalmente na figura dos próprios replicantes do modelo Nexus-6 (o mais avançado até então) e na forma como eles enxergam sua condição – nem totalmente humana (e portanto “real”), e nem totalmente sintética (e consequentemente “ilusória”). O processo de inserção de memórias confere aos replicantes a falsa percepção de que eles são seres humanos reais, mas os blade runners possuem um teste, chamado Voight-Kampff, que é aplicado por um especialista que consegue captar falhas no processo de construção da noção do “eu” nestes replicantes: uma vez que a inserção de memórias é apenas funcional, trazendo elementos básicos para a construção da personalidade dos mesmos (memórias dos pais, do que estudaram, de como adquiriram determinadas habilidades, etc), não há uma totalidade nas experiências cognitivas dos mesmos, impossibilitando que eles se lembrem de coisas básicas (como, por exemplo, a noção de como se sentiram em relação ao seu melhor amigo de infância ao saber que ele saiu com a pessoa por quem eram apaixonados: lembranças do tipo, perfeitamente possíveis e necessárias, não existem nem de forma minimamente similar nos replicantes). O teste induz o replicante a ter reações emocionais às perguntas que denunciam sua condição de replicante. No modelo Nexus 6 isso é ainda mais gritante, uma vez que devido aos avanços de engenharia estes replicantes começaram a apresentar traços emocionais que os tornaram demasiadamente perigosos.

Por sorte, os replicantes contam com uma data de validade incumbida de dar fim às suas atividades – portanto, após um período de geralmente 4 anos o corpo dos replicantes adoece e eles “morrem”.

Mas será que é possível que um andróide realmente morra? E para ele, o que seria a morte?


Embora em muitos aspectos a obra do autor acabe diferindo (e muito) da versão apresentada por Scott, lidamos com algumas questões complexas no filme.

A principal delas é, sem dúvidas, a questão acerca do tempo.

“O homem que tem coragem de desperdiçar uma hora do seu tempo não descobriu o valor da vida” – Charles Darwin

O tempo em Blade Runner é apresentado de três formas distintas, que, apesar de suas particularidades, ainda assim convergem em prol da mesma dialética ontológica:

1: A ausência de uma noção de “tempo futuro”

No filme, o futuro finalmente chegou: após intermináveis querelas filosóficas sobre o tema, os filósofos finalmente entregaram o bastão para as ciências exatas e seu fatalismo objetivo. A bioengenharia chegou, a criatura finalmente se tornou criadora e não há mais a noção de que “no futuro as coisas serão diferente”. O futuro é agora – e por ser agora, as corporações ganham ainda mais força em seus discursos de consumo imediatista e de exploração desenfreada.

2: A noção de tempo cronológico para J. F. Sebastian

O personagem em questão, um geneticista a serviço da Tyrell Corporation, é acometido pela “Síndrome de Matusalém”, que lhe confere um envelhecimento celular acelerado (no filme caracterizado pela aparência envelhecida do personagem, mesmo aos 25 anos). Para Sebastian, o tempo corre duas vezes mais rápido, e embora não possa ser desconsiderado um “ser perfeito” (na tensão segregacionista apresentada no filme entre humanos e replicantes), Sebastian ainda assim compartilha de algumas características dos próprios replicantes: possui uma expectativa de vida duplamente limitada – pois sabe que morrerá, como todo ser humano, mas que morrerá logo –, e não consegue ter uma vida “normal” – o que é externalizado em seu comportamento introvertido causado pela sua anomalia genética, principalmente no tocante à plenitude de sua vida sexual (pois quando a replicante Pris começa a seduzi-lo buscando, com isso, obter a sua ajuda, ele fica absolutamente desconfortável, ainda que estivesse apreciando aquela experiência).

Além disso, Sebastian compartilha do que se convém chamar de Síndrome do Criador, que acomete a uma parcela significativa de divindades em mitos de criação: o desejo de perpetuar sua memória. Em muitas divindades, assim como em Sebastian, o desejo de criar seres é causado pelo desejo de ser reconhecido e adorado pela capacidade única do criador em deter o poder da criação – bem como os meios para fazê-lo. Ora: para o séquito de andróides criados por Sebastian, seu criador é perfeito e generoso pelo simples fato de tê-los criado; e para Sebastian, ser reconhecido como perfeito por alguém e ser eternizado pela sua obra concedem a ele uma ressignificação de sua própria existência – que por si só é duplamente atormentada pela eterna dúvida do “por que eu existo?” e do “por que eu existo desta forma?”.

Um detalhe importante: assim como nos mitos de criação, um modelo “mais perfeito” de criatura, em si mais próxima da figuração de seu criador, acaba se rebelando contra o próprio criador. Percebam que quanto maior o grau de complexidade da noção do “eu” construída por um ser, maiores são as perturbações e enfrentamentos com os quais ele deve lidar em ordem para poder entender a sua própria condição: enquanto os andróides infantilóides de Sabastian apresentam um comportamento pacífico e inocente (demonstrado pelo andróide que repetidamente acaba se chocando contra a parede), claramente mais focado nas interações com o ambiente do que nas relações estabelecidas com ele (similar aos anjos – principalmente pelo mesmo andróide mencionado acima que, em determinada cena, transparece um desespero lancinante ao perceber que Pris representa uma ameaça a seu criador), os modelos do Nexus-6 são assombrados pela consciência de suas condições replicantes, enquanto criaturas (numa analogia aos anjos caídos ou à vida em sofrimento imposto ao homem após o pecado original), buscando no pouco tempo de existência que lhes foi conferido uma razão para sua própria condição de existência (eles sempre existiram? Onde estavam antes de serem criados? Para onde irão quando deixarem de existir – se é que isso é possível?).

Embora a figura de uma “entidade criadora” seja relacionada à personagem de Sebastian, a tensão “criador X criatura” certamente é mais trabalhada no filme entre Eldon Tyrell e Roy Batty, que veremos a seguir.

3: A noção de tempo para Roy Batty

O replicante Roy é, sem sombra de dúvidas, o ponto principal da película – pois sua crise existencial, que o assombra durante todo o filme, é o tom da reflexão filosofo-científica que permeia o longa.

Roy é um replicante do modelo Nexus-6, que é o mais novo modelo criado pelo cientista e magnata Eldon Tyrell. O binômio é estabelecido: temos criador e criatura habitando finalmente o mesmo plano, pois quando Roy é concebido enquanto conceito (ou seja, na concepção acadêmica do modelo Nexus-6), ele efetivamente existe numa realidade 2D (no papel), enquanto Tyrell, o criador, permanece acima da prancheta numa realidade 3D (na plena senciência do ser), por assim dizer. E é a partir do despertar de Roy, e consequentemente dos demais replicantes, que a transição entre o ser e o saber ser é estabelecida. Ora, do que valeria uma existência desprovida de senciência? E o mais importante, pelo menos para Roy: do que valeria uma existência passível de um fim?

Roy é apresentado no filme já padecendo de alguns sintomas característicos do final de vida de um replicante, com o tecido biológico de seu corpo colapsando enquanto ele busca, desesperadamente, prolongar sua existência. Em sua corrida contra o tempo, Roy finalmente confronta seu criador, Tyrell, perguntando se “o criador pode reparar sua criação”: ele deseja obter uma forma de expandir a expectativa de vida dos replicantes, chegando inclusive a discutir a possibilidade de complexas modificações genéticas no DNA com o experiente cientista. Tyrell então explica que diversas tentativas de expandir o tempo de vida dos replicantes já foram estudadas e aplicadas em laboratório, mas que nenhuma delas obteve êxito.

— “Vocês foram concebidos da melhor forma possível”, diz o cientista.

— “Mas não para durar”, responde o replicante.

A angústia de Roy ao descobrir que a sua finitude é um “fato da vida” – como diz o próprio Tyrell – faz com que o personagem entre em uma complexa e abrupta realização da noção de tempo que lhe resta: o resultado é externalizado através da aceitação fatalista do fim per se, e quando Roy consegue compreender que nem mesmo seu criador consegue ajudá-lo em sua busca pela eternidade, o “deicídio” é consumado numa cena visceral em que Roy parece descontar toda a sua frustração e medo perante a morte.

Para Roy, portanto, o fim se aproxima impiedosamente, incitando nele um frenesi que é agravado ao personagem deparar-se com o corpo de Pris no chão, morta por Deckard: a visualização da morte da replicante dá início à intensa sequência final do longa, com o consequente embate entre o blade runner e o replicante.

E é aqui que temos o amálgama excruciante entre a noção de tempo, realidade e eternização da memória para Roy.

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Nos momentos finais do longa, o replicante leva a melhor sobre Deckard e consegue quebrar os dedos de uma das mãos do caçador. O embate é levado para o terraço do prédio, onde Deckard acaba pulando em direção a outro prédio para fugir do replicante ensandecido pelo excesso de realidade de seus últimos momentos: o problema é que Deckard, fatigado e machucado, não consegue pular até o outro prédio, e acaba se segurando em uma barra de ferro, escorregadia devido à chuva torrencial, lutando por sua vida.

Uma queda daquela altura seria fatal para o caçador; Deckard está com uma mão inutilizada, prestes a se soltar – e o replicante sabe disso.

“É uma experiência terrível viver com medo, não? Isso é que é ser um escravo.”

Após observar, com deleite, o desespero de Deckard em busca de uma forma de manter-se agarrado à barra de ferro, no último momento em que Deckard finalmente não consegue mais sustentar o peso de seu corpo e cede ao cansaço, a caça estende sua mão em direção a seu caçador, puxando-o para o terraço e evitando que o blade runner caia e morra.

O ato de Roy salvar Deckard, seguido de um dos monólogos mais intensos da história cinematográfica, revela o quanto o replicante é transformado pela experiência de finitude de seu ser.

Salvando Deckard, Roy salva também a si mesmo – e isso é possível porque Roy compreende que, para a sua realidade, o tempo é memória; a existência passa a ser o legado, e não a interação de um indivíduo eternamente atido à experiência constante num tempo presente.

Por isso que, ao salvar Deckard, ele inicia o seguinte monólogo:

“Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-C brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer.”

Ao evocar suas memórias, Roy consegue afirmar a sua própria existência ao enfatizar que tais lembranças pertencem a ele, e somente a ele; destarte, as memórias são assim eternizadas, pois Deckard continuará vivo – e com ele, as memórias de Roy.

Desta forma, Roy finalmente consegue aceitar o fim como um processo natural e rende-se parante a morte – eternizado, senciente e real -, liberando a pomba que segurava em suas mãos e fazendo ecoar as derradeiras palavras de seu pai, Eldon Tyrell:

“A luz que brilha o dobro só dura a metade do tempo”

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